ontem esqueci de escrever por aqui. acordei e lembrei. de certa forma gostei, porque isso não pode virar uma obrigação e um dia, nesse tempo opaco, quase nem existe. já faz uns dez anos que estudo a literatura de testemunho e as formas de dizer o indizível: o paradoxo de não ter como dizer e se ver obrigado a dizer. sempre fui filha de sobrevivente, mas hoje somos todos sobreviventes, nós, testemunhas do indizível: a patroa que mata o filho da empregada, a blogueira que diz que o racismo é inevitável porque os negros matam mais, o presidente que quer mais mortes de pobres e de idosos. estou dizendo tudo isso mas tudo isso não é dizível, não deveria fazer parte da língua. beckett, jabés e paul celan souberam fazer as palavras serem restos, fragmentos que pululam soltos, alheios à necessidade linear de fazer sentido, quando nada faz sentido. nunca se deve perguntar à obra de um deles o que ela quer dizer. querer dizer é tudo o que elas rejeitam. palavras testemunhas não querem dizer nada; são ruínas de falas mortas. “roucos, os relógios fortes dão razão à hora fendida”. “com dentes de escrever, mastigar esse pão”.
(versos de paul celan em tradução de celso fraga)