L de Lá

07 de março de 2011

Por Noemi Jaffe para Revista Serrote

Minha mãe, que é húngara, quando fala comigo ao telefone e diz que vem até minha casa, fala assim: “Estou indo pra lá”. Ela, no Brasil há 60 anos, não conseguiu aprender a especifi­cidade do termo “aí”, o que a faria dizer: “Estou indo aí”. Ai é o aqui do outro: um advérbio muito sofisticado e bem bra­sileiro, de difícil apreensão por um falante não nativo. Por­tadores do aqui do eu e do aqui do outro, para nós o “lá” fica reservado para usos e significados que considero, de forma chauvinista, mais amplos e poéticos do que, por exem­plo, o there ou o  do francês, que estranhamente também é “aqui”. Ao lá, em português, dispensado de ser o aqui do outro, ficou reservada uma distância que é, e ao mesmo tempo não é, indicativa. Lá pode ser um lugar determinado, mas também é, simultaneamente e sempre, um lugar incerto, todo ou nenhum lugar, uma distância física e imaginária, um lugar solto e sozinho no espaço e também no tempo. Afinal, se lá não fosse também uma indicação de tempo, por que dizemos “até lá”, referindo-nos a uma data? Porque lá é, misteriosamente, um lugar no espaço e no tempo. É lá – para onde as coi­sas vão e de onde as coisas vêm, e ao dizer “até lá” é como se pudéssemos finalmente, como promessa e como cumprimento, por uma vez, alcançá-las. Quando chega o momento de cumprir o “até lá”, quando aquele lá vira agora e aqui, estranhamente o lá permanece intacto, uma fonte inexau­rível que não cessa de se distanciar. Se não fosse assim, por que então, em vez de sim­plesmente dizer “não sei”, dizemos, muito mais enfaticamente: “Sei lá”? “Sei lá” é não sei e não quero saber. É uma declaração de que meu interesse pelo assunto está lá e de lá não vai sair. Foi para lá; portanto, não vai voltar. O contrário disso, entretanto, é a expressão linda “lá vou eu”, indicando, agora sim, um desejo potente e confiante de, nesse caso, ir para . “Lá vou eu” é ofr enentamento de um desafio, é um aqui e agora carregado de lá, portanto mais nobre e temerário. A própria inversão da frase – lá vou eu, em vez de “eu vou lá” – já empresta nobreza e coragem ao sujeito que lá vai. É como um “seja o que Deus quiser” laico, cujo resultado é, no mínimo, engrandece­dor. Quem diz e realiza a promessa do “lá vou eu” pode dizer que esteve lá. Gertrude Stein, enriquecendo a pobreza do inglês, pelo menos nesse sentido, diz que não fica­ria nos Estados Unidos, porque “there is no there there”. É verdade. O inglês, forçado ao pragmatismo, perdeu o sentido longín­quo e incognoscível de um there maciço, inexpugnável. There se tornou simples­mente o contrário de here, deixando de compreender a beleza de uma expressão como there is, para querer dizer somente “há”. Em português, felizmente, além do “há”, também mantivemos o “lá está”. Penso que uma tradução totalmente não literal, mas de alguma forma fiel a “there is no there there”, poderia ser “lá lá lá”, não só porque ela mantém os três “lás”, mas principalmente porque ela diz, de forma bem brasileira, que aqui ainda há lá. Talvez seja porque lá é também uma nota musical. Sempre me lembro da tradução da canção do filme A noviça rebelde, em que ela ensi­nava aos filhos do sr. Von Trapp as notas musicais. Para o lá, em português, a letra dizia: “Lá é bem longe daqui”. Em inglês é “a note to follow so”. Quero que lá seja para sempre bem longe daqui e que fique man­tido naquele lugar que está perfeitamente traduzido na piada dos dois caipiras, que veem pela terceira vez um elefante voando bem alto no céu, em direção ao leste, e então um deles diz: “Acho que o ninho deles é pra lá”.

 

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