16.06.2020

acordo sozinha, mais cedo. cozinha, suco de tudo, a samba quer sair, não pode porque acorda o joão, mas sai, late alto, ele acorda, panelinha de café pequeno, jornal, sabão de coco, plástico no lixo, torrada com geleia e queijo minas, sempre me espanto como o café da manhã é bom, todo dia igual mas não faz mal, gosto de poucas coisas sempre idênticas mas o café pode o mesmo até morrer, e a laranja bahia de sobremesa no almoço seguida de cafezinho com dois quadradinhos de chocolate, detesto chocolate que não vem dividido em quadradinhos. na aula de hoje, o importante é ter consciência da morte. um bom escritor deve saber que vai morrer. como se preocupar mais com o que se escreve do que com quem escreve? eu falo, mas não sei. a jeanne-marie gagnebin, assistindo uma vez ao programa mais você, da ana maria braga, disse pra que mais eu? queria um programa que chamasse mais o outro, mais eles, mas não mais eu. é esse o busílis, o áporo da questã. graças a deus o português tem o sujeito oculto e o verbo permite a flexão de pessoa. vocês já pensaram que o verbo tem flexão de pessoa, número e tempo? é demais para mim.


06.06.2020

não gosto da esperança e prefiro o desespero, que é a desistência da espera. hoje estou desesperada e, só por isso, ouvi um disco inteiro do dire straits e fiquei lembrando de oitenta e sete, quando ouvia esse disco e sonhava com coisas que não posso nem dizer. também fiz uma torta de espinafre e queijo feta, limpei os banheiros, imaginei minha mãe rezando na guerra, pintei as unhas, continuei lendo um livro sobre os pampas argentinos e comecei a ler outro sobre as interpretações do mito de adão e eva. não quero mais estar aqui, quero levar todas as pessoas legais para longe daqui e fundar uma escrevedeira kibutzica onde caibam todas as pessoas, que vão ficar ensinando e aprendendo e lendo e brincando e tudo de graça. e como nada disso vai acontecer, aumenta o desespero e só quero então que amanhã todos buzinem e ponham panos brancos nas janelas e aplaudam as torcidas que vão às ruas e que o Mal que nos governa seja esmagado pelo nosso grito e pelo nosso amor.


04.06.2020

ontem esqueci de escrever por aqui. acordei e lembrei. de certa forma gostei, porque isso não pode virar uma obrigação e um dia, nesse tempo opaco, quase nem existe. já faz uns dez anos que estudo a literatura de testemunho e as formas de dizer o indizível: o paradoxo de não ter como dizer e se ver obrigado a dizer. sempre fui filha de sobrevivente, mas hoje somos todos sobreviventes, nós, testemunhas do indizível: a patroa que mata o filho da empregada, a blogueira que diz que o racismo é inevitável porque os negros matam mais, o presidente que quer mais mortes de pobres e de idosos. estou dizendo tudo isso mas tudo isso não é dizível, não deveria fazer parte da língua. beckett, jabés e paul celan souberam fazer as palavras serem restos, fragmentos que pululam soltos, alheios à necessidade linear de fazer sentido, quando nada faz sentido. nunca se deve perguntar à obra de um deles o que ela quer dizer. querer dizer é tudo o que elas rejeitam. palavras testemunhas não querem dizer nada; são ruínas de falas mortas. "roucos, os relógios fortes dão razão à hora fendida". "com dentes de escrever, mastigar esse pão".
(versos de paul celan em tradução de celso fraga)


02.06.2020

o luis é um médico potiguar, coordenador de uma uti do sus. hoje ele disse que precisa escolher quem deixar morrer e é obrigado a escolher pessoas com mais de sessenta e cinco anos. metade dos doentes com insuficiência respiratória, submetidos ao ventilador, precisam de diálise e não existem pessoas suficientes que saibam operar as máquinas. faltam enfermeiros, faltam remédios. ninguém mais fala em cloroquina, nem os minions, ele disse. a maioria dos seus colegas médicos é bozonazista e ele não suporta mais. ele está cansado e não sabe se vai conseguir suportar até que as coisas melhorem. ele não tem perspectiva de melhora. ele é meu aluno, é engraçado, bem humorado e está com uma raiva tão danada, no potiguar dele, que, só hoje, escreveu oitenta e sete palavrões. hoje li, no edredon, vide bula, mas estava escrito vida bela. a vida bela agora é vide bula e queria ficar muito tempo ao lado do luis, que ele escrevesse os textos tão engraçados que escreve, que eu pudesse operar as máquinas de diálise, que os fascistas escaldassem numa piscina de cloroquina e ninguém mais deixasse o luis ter que escolher quem deixar morrer. o que será de nós, o que de nós será, o de nós será que? vide bula.


29.05.2020

respondi no twitter do sinistro da educação, que comparou a apreensão de vinte e nove celulares com o nazismo. se tem uma coisa que me pega pelo nervo trigêmeo do fígado é falar de nazismo, é fazer qualquer comparação com nazismo. não adiantou de nada, claro, como nada adianta, mas distensionou um pouco o nervo, que estava inflamado. depois dessa tarefa não hercúlea, mas sisífica, lavei a louça e fiz feijão. quase terminando o rastro dos cantos, do bruce chatwin, sonho com um nomadismo interno, em que me desloco de um canto a outro do corpo, cantando os rastros que as pegadas do tempo deixaram em cada parte: aqui a vacina contra sarampo, aqui o machucado de quando fui arrastada por um cachorro, aqui a cicatriz da gravidez tubária, aqui o fio de barba de bruxa único no queixo, aqui o cascão do calcanhar seco, aqui uma ferida no coração de uma fossa antiga e nunca completamente recuperada. de manhã conversei por quase duas horas com um amigo com quem achava que estava brigada. mas foi dizermos alô e desbrigamos tudo. tenho até medo de enunciar que alguma coisa parece estar se mexendo. ups, disse. deixar os caras com medo, desorientados. será que vai adiantar, meu deusinho, ou será que vai atrasar ainda mais esse relógio coarctado?


22.05.2020

há alguns anos eu já tinha falado sobre gelsomina, que ontem revi em "la strada", do fellini. gelsomina, você é o lastro de sonho sustentando o mundo. gelsomina, me socorre nessa colisão de feridas e malogros. gelsomina, pedregulho inábil que desorienta as réguas. gelsomina, me ensina a arregalar os olhos. gelsomina, me dá uma colherada de sopa da tua panelinha. gelsomina, me dá o abraço que o zampano não pode te dar. gelsomina, não chora mais. gelsomina, não sei tocar trompete, mas compro um e vamos aprender juntas a tocas as melodias do nino rota. gelsomina, se você viesse hoje aqui em casa, a gente dividia a pizza das sextas-feiras, você me ajudava a tirar os pelos da samba do tapete e fazia cócegas nela. gelsomina, você iria rir assistindo o jornal nacional e o vídeo da reunião ministerial, porque você iria ver que isso não é nada, você iria me dar uma bronca, onde já se viu se chatear com isso, mulher. gelsomina, você iria desligar a tv e me chamar para tocar mais trompete. gelsomina, toda meia-noite eu sonho com você, se você duvida eu vou sonhar pra você ver. gelsomina, quero ser ninguém como você, ninguém pra sempre, dormindo dentro da tua carroça com você e te auxiliando no toque do tambor: "e arrivato zampanò".


19.05.2020

hahahaha, quem for de direita toma cloroquina, quem for de esquerda toma tubaína. quem for de direita mata mil cento e setenta e nove pessoas em um dia, quem for de esquerda morre. quem for de direita mata o joão pedro, de quatorze anos, dentro de casa, quem for de esquerda assiste e fica quieto. quem for de esquerda fica reclamando que o felipe neto não é suficientemente inteligente pra ser de esquerda ou não suficientemente puro pra ser de esquerda. quem for de esquerda nem vai mais saber se é de esquerda, porque ser de esquerda, no brasil, tem sido mais um nome do que qualquer outra coisa. quem for de esquerda esqueça que é de esquerda, agora, e pense somente em encontrar caminhos para tirar o presidente que não é de direita nem de nada, mas de átomos tóxicos de merda misturada com cloroquina. quem for de esquerda, aprume seus ódios e amores e saia na janela gritando que não dá mais. quem for de esquerda, de centro, de centro-esquerda, de centro-direita e de direita, quem tiver ideologia, decência e dignidade, e não quiser que o mal continue colapsando nossas artérias e as do joão pedro e de mil cento e setenta e nove pessoas, se alevante e brigue. quem for de merda que vá à merda.


14.05.2020

você pega quinhentos gramas de acém e corta em cubos pequenos. daí você pica uma cebola inteira, três dentes de alho e uma cenoura e refoga os três últimos em umas três colheres de sopa de azeite. junta a carne, até que ela fique morena. acrescenta uma colher de chá de páprica, duas colheres de sopa de molho de soja (sem conservantes), umas três colheres de sopa de tomate pelado (de latinha), sal, pimenta do reino e dois copos de água. tampa a panela de pressão e, depois que a válvula começar a girar, deixa vinte minutos. meu deus, apareceu um tucano na janela. a gente não conseguia acreditar. ele parou no beiral e ficou lá, olhando, se coçando. nesse meio tempo, você pica umas três batatas médias. quando tirar a pressão, você acrescenta as batatas picadas e mais um pouco de água. a carne já deve estar macia e com um molho grosso e escuro. deixa mais dez minutos na pressão, serve imediatamente e você vai sentir um restauro bochornoso e acalmadiço no peito e nas mitocôndrias. o tucano voltou para o mesmo galho e ficou lá, sem medo da gente.


29.04.2020

ontem atingi o pico de popularidade e agora vou ter que lidar com a síndrome do gênio interrompido, porque nunca mais vou conseguir escrever a mesma coisa. só se eu repetisse o post, como o pierre menard do borges. vou ter que lidar com o fracasso, esporte favorito dos brasileiros. podíamos inventar o defeatball: onze pessoas de cada lado, paradas e uma bola rolando sozinha, entrando continuamente num gol sem goleiro. credo. as aulas online, com todos pegando o microfone, um de cada vez e falando suas impressões, são como uma graça do humano comungando o humano. graça, que quer dizer: graciosidade, gratuidade, bênção e riso, todas a mesma coisa, na verdade. humanos somos graciosos, engraçados, gratuitos e agraciados e por isso existimos. os sem graça são os desgraçados, para quem não existe almoço grátis. ixi, exagerei nas associações lexicais e não quero virar freira. tirei folhas secas da grama com um ancinho, instrumento que nunca tinha usado. ancinho, cif cremoso, escova de privada, flanela. coisas em si, praticamente metafísicas.


28.04.2020

fiquei bêbada e daí fico chata, repetindo as coisas e só querendo comer muito chocolate, que não tem aqui em casa, então comi três bis que eu tinha guardado no freezer. mas eu não acho que fico tão chata assim. a leda me marcou num sorteio pra ganhar uma panela le creuset no dia das mães e ela nem mãe é. se eu ganhar, dou a tampa pra ela. cansados de ouvir o governante de seu país rosnar, arrulhar, grunhir e tonitruar boçalidades bósticas, o povo, mesmo doente, mesmo confinado, mesmo fodido, rugiu. e o governante morreu afogado numa piscina de cloroquina e desinfetante, gritando, i love you trump, enquanto sua mulher desligava o aquecimento central. e os livros saíram das bibliotecas, os vinis das estantes, as tintas dos frascos, as crianças das camas e, juntos, entoaram uma canção de amor às plantas e aos animais, à terra e à montanha e isso não era um sonho e o dia amanheceu em paz. lancei meu livro que não tinha lançado ainda e quando isso tudo acabar vocês vão ver, mas vamos juntos sussurrar que a verdade acabou, a justiça morreu e agora só sobraram um fósforo, uns grilos e uma voz, que diz assim: é por aqui, gente, olha que bonito esse caminho.