Caos vibrante
25 de Junho de 2021
Por Noemi Jaffe no site Fronteiras do Pensamento
Considerações sobre meu processo criativo
Sou uma escritora confusa. Meu processo criativo é contínuo – pensamentos, sonhos, associações, leituras, pesquisas – e, ao mesmo tempo, segmentado. Sei que isso parece contraditório, mas tem funcionado ao longo dos últimos anos, produzindo uma literatura que, na minha opinião, reflete bem esse lapso aparente entre fluxo e interrupção.
Faço muitas atividades simultâneas: escrevo literatura, sou professora de escrita, escrevo colunas e críticas e administro um espaço cultural. Não tenho como separar essas atividades e, por isso, elas acabam todas se misturando e dou aulas como se estivesse escrevendo, escrevendo colunas como se estivesse numa reunião e escrevendo livros como se estivesse dando aulas. Encontro semelhanças entre todas essas coisas e uma sempre interfere na outra, seja tematicamente ou na forma como crio. Assim, enquanto preparo uma aula, lendo um trecho de algum autor, vou reparando nas nuances dos recursos narrativos e pensando em como posso usá-los no que estou escrevendo. As conversas com os alunos sempre me abastecem de ideias e uso minha própria escrita para análise em classe, expondo-a às críticas dos escritores que frequentam as oficinas. Procuro escrever as colunas com um viés literário, assim como, cada vez mais, me interesso por eventos concretos para dar sustento à linguagem ficcional. É como uma roda ourobórica que se retroalimenta, justificando que eu não precise parar uma atividade para me dedicar à outra. Além disso tudo, também gosto muito de desenhar e de bordar, coisas que, embora sem competência alguma, vão se fazendo no tempo, que é o de que mais preciso para entender o processo de escrita, também ele feito de contornos e alinhavos.
Por isso considero que minha escrita seja contínua – porque passo os dias, semanas e meses pensando no que vou escrever, como vou escrever e por que quero continuar escrevendo, mesmo que não sente para fazê-lo. Aliás, costumo escrever nas coxas, ou seja, sentada num sofá, com o computador no colo. Vou lendo e tudo o que leio, de alguma forma, me remete ao livro que imagino desenvolver. De repente, estou fazendo uma pesquisa a respeito, anotando, fazendo fichas, começando e terminando caderninhos. Tudo é fonte: músicas, filmes, notícias e, principalmente, outras leituras.
Por outro lado, quando decido que chegou a hora de dar início ao romance, o processo contínuo que vinha de desenrolando se torna espasmódico e interrompido.
Novamente devido às coisas que não param, meu tempo de escrita é curto e eu mesma não tenho o fôlego para me dedicar muito tempo a escrever. Fico, em média, cerca de uma hora por dia nessa atividade e retomo no dia seguinte. Às vezes até menos. Uma de minhas características narrativas é que não gosto de sequências: temporais, de trama, de cronologia. Não consigo escrever e não tenho afinidade com histórias que seguem linearmente e que contam peripécias de um início até um fim. Adoro ler coisas assim nos livros de outros escritores, mas pessoalmente, não é esse o meu forte. Por isso, não suporto nem a visão de expressões do tipo “no dia seguinte”, “muito tempo depois”, “naquela manhã”.
Não sei o que veio antes: se minha dificuldade em ficar várias horas escrevendo me levou a isso ou se isso me levou a não ficar diante do computador essas várias horas. O fato é que esse tempo curto faz com que minha literatura seja, quase sempre, feita de capítulos curtos e fragmentos que, muitas vezes, podem ser lidos até autonomamente. Minha vontade é que o leitor sinta como se nada começasse nem terminasse, mas acontecesse. Que ele faça as conexões temporais que quiser e que ligue os eventos conforme sua interpretação.
Da mesma forma, quando começo um livro, tenho algumas ideias sobre o tema geral, mas quase nada sobre a forma como ele será desdobrado. Aliás, um dos motivos que mais me estimulam a escrever – e acordo de manhã ansiosa por isso – é descobrir o que, mas principalmente como, vou escrever alguma coisa. É no próprio gesto da escrita, nas palavras que uso, que vou me dando conta da história e de seu desenvolvimento. Ah, então quer dizer que a personagem é gaga? Eu não sabia. Ou então, que surpresa que a protagonista tenha resolvido fugir ou que tenha dito aquilo dessa forma. Tenho certeza que a mente em estado de escrita funciona diferente do que em outros estados e que a disposição física e mental para escrever literatura condiciona formulações semânticas e sintáticas totalmente distintas daquelas que costumamos fazer quando falamos.
Escrever é da ordem das coisas arriscadas e se a escrita não for um risco, na minha opinião, é melhor não escrever. É preciso que um escritor se arrisque inteiro no que faz: que não saiba mais do que saiba; que experimente se aventurar em formas que ainda não domina; que pesquise temas ainda estrangeiros à sua história; que fale sobre assuntos capciosos; que se entregue aos seus personagens como se eles pudessem rasgá-lo por dentro e por fora; que seu corpo e sua mente estejam ambos empenhados em buscar encontros inesperados entre si e com a escrita. Sei que essas premissas são bastante idealistas, mas, na prática cotidiana da escrita, esse processo é estranhamente plausível e, de qualquer forma, se a literatura não esbarrar em torno de algum sonho ou ideal, fica difícil entender por que exercê-la. “O poema deve ser como a nódoa no brim: fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero”, Manuel Bandeira disse num poema e quem sou eu para negá-lo? Acontece que, para desesperar o leitor satisfeito de si é necessário também sujar-se e nenhum livro que confirme ou reproduza as coisas como elas são vai conseguir desesperar alguém.
Faz parte dessa ideia de risco uma noção que Tim Ingold, antropólogo inglês, desenvolveu ao refletir sobre caminhadas, prática que também é parceira da escrita: o caminhante nômade, segundo ele, é não somente aquele que se coloca como sujeito do que vê, escuta e testemunha ao longo de suas trilhas, mas, igualmente, aquele que sabe se colocar como objeto do que presencia. Ele se permite vagar sem saber para onde, se permite ser surpreendido pelo que vê e se deixa ser visto pelos outros, pessoas e coisas, que também se surpreendem com ele. Na escrita ocorre algo semelhante: o escritor flanador deixa que seus personagens o espantem, não sabe exatamente para onde vai e se permite ser levado pelas palavras, entregando parte de sua atividade ao corpo e não somente à cabeça. Quando é o corpo, ou a mão, a conduzir a escrita, o escritor se torna parte integrante do que escreve, organicamente associado a sua criação. E não penso aqui em nenhuma possessão divina ou inspiratória, de modo algum. Como já disseram tantos outros, a inspiração não passa de uma combinação de fatores externos e internos que, no processo e no trabalho criativos, desperta novas formas e ideias. Penso, na verdade, em um escritor que sabe não ser somente sujeito, mas também objeto das circunstâncias e das palavras. Por paradoxal que possa parecer, não é a autonomia que garante a liberdade da escrita, mas um equilíbrio entre autonomia e heteronomia, em que os outros – as palavras e as coisas – interferem no escritor tanto quanto ele interfere nelas.
Sou uma escritora confusa, como disse. Mas me sinto bem nessa confusão e aprendi a gostar dela, um caos vibrante de que participo, ora no placo e ora na plateia.