16.02.2021

sabemos usar saudade e saudades mas não sabemos como sabemos isso. essas palavras nos sabem mais do que nós a elas. saudade de comer chokito pela primeira vez, quando fui ao jardim botânico com a escola; saudades de você e de te abraçar; saudades de quando a tia pola me comprou dois queijos quentes no macabi; saudade de tomar coca-cola no gargalo com o meu pai; saudades de uma festa de arrombar o gargalo do culote, tipo de festa que aliás sempre detestei; saudades de acreditar; saudade da bahia, de salvador com a milena e a sarah, comendo polvo num boteco; saudade dali, ó; saudades sem ser "de" alguma coisa; saudade do brasil, saudades do brasil. vou por aí fazendo novas amigas nas brenhas: janaína, voltar a ver o rosto da cátia, o sorriso misterioso da maria, o topete charmoso da marcy.


22.02.2021

a leda e o miguel vieram aqui e nós cozinhamos juntos, queijo brie na massa folhada, legumes assados, uma peça de filé mignon e vinho muito bom; em volta da mesa da cozinha passamos a tarde e parte da noite conversando, rindo e ouvindo música. o dia estava bonito e a leda leu "por não estarmos distraídos" da clarice, em que ela fala que é o fato de queremos dar nome às coisas, tê-las, que nos faz perdê-las. e estávamos distraídos, nós, do dia que íamos formando e agora, ao nomeá-lo, procurando possuí-lo, parece mesmo que ele se afasta como se fosse uma foto que vi em algum lugar. por isso foi tão bom, agora penso, não termos tirado foto alguma e nem termos pensado nisso. como é bom não ter fotos de coisas boas, não ter registros físicos além do resto da carne guardado num tupperware na geladeira.


25.02.2021

a new yorker diz que se a francês mcdormand ganhar o oscar, com nomadland, ela deve ir de crocs à cerimônia. isso é um elogio e ela e o filme são um só, numa relação entre personagem e narração que é como a da dança com o dançarino. já se falou muito sobre o nomadismo como uma alternativa ao enraizamento rural, à estabilidade urbana e às convenções burguesas. mas ainda não como um gesto de desespero, de fuga da dor. nesse filme sentimos essa dor, mas também afetos expansivos entre pessoas que não se conhecem, o que inibe as sempre previsíveis culpas e egoísmos. hoje lembrei que meu pai gostava de falar bonito e dizia aposento em vez de quarto. sempre que eu ia ao médico com ele, antes de o médico perguntar qualquer coisa, ele já dizia: urina, bom; fezes, bom. começava uma frase com "referente a" e, para pedir um beijo meu, mostrava a bochecha e dizia: "aplica". beijo, pai. beijo, francês.


28.02.2021

meu pai dizia que gostaria de ter sido ou um empresário de sucesso do ramo da siderúrgica ou um guarda de trânsito ou presidente do brasil. parece absurdo, mas não é, porque eu também me pego querendo ser uma líder política, de vez em quando. num lance retórico inolvidável, eu conseguiria unir a esquerda em torno de dois nomes intercambiáveis - presidente e vice. se não conseguissem decidir, por vaidades várias, tirassem no palitinho. digamos, os nomes poderiam ser miro e fula, ou carina e shadad ou pino e roulos. mas eu os convenceria, no meu delírio megalômano mágico-mítico. o joão achava que lasagna vinha de lazio, mas não. vem de lasania que, no latim vulgar, significa um pote para cozinhar. mas não foi por isso que hoje errei na lasanha, foi por não ter percebido que a massa não era pré-cozida. o miro e o fula precisam entender que a massa não é pré-cozida e que se puser no forno assim, vai dar errado também. e que lasanha não vem, não vem, não vem de lazio nem de roma nem da toscana, mas vem de pote de comida, pelo amor de deus, vem de pote de comida.


11.04.2021

meu primeiro namorado virou paraquedista do exército de israel; uma vez, no cinema, sentei no colo do meu então namorado e por isso virei o escândalo da escola; no bar-mitzvah de um garoto que eu gostava, fui de macaquinho quando a moda era saia maxi e por isso fui ostracizada; em santos, me sentindo gorda e rejeitada, fui até o mar e acreditei ser dona do movimento das ondas; fazia aulas de piano na rua antônio coruja, a professora tocava mozart no quintal e me perguntava o que eu imaginava; brincava de ser americana nos ônibus e falava inglês com o cobrador; criança, batia longos papos com o armário embutido do meu quarto; aos cinco anos, bati o pé com o diretor da escola porque não queria repetir o pré-primário; aos três, engoli um pedaço de vidro de uma guaraná e meu pai chorou de medo; decidi sair do rio branco e ir pro equipe, onde cheguei carregando um jornal opinião embaixo do braço; meus pais foram me buscar num acampamento, porque descobriram que eu tinha pego segunda época; eu e a suely fugimos de outro acampamento e fumamos um maço inteiro de cigarros mentolados na avenida paulista; ontem eu sonhei que era um vulcão.


26.04.2021

teju cole, sempre ele, fala sobre a diferença entre "fix" e "repair". diz que a palavra "fix" o incomoda, porque ele não considera possível consertar nada da forma como "fix" propõe, ou seja, de forma fixa e total. já "repair" pressupõe lentidão e cuidado, algo como "cerzir", "costurar" e também algo que pode ser depois desfeito e refeito, ao passo que "fix" não permite esse processo. além disso, "repair" também tem o sentido de "reparação"; um tipo de perdão acompanhado de elaboração, um perdão sincero e fruto de muito trabalho interior e com a pessoa interessada. me despeço mais uma vez desses textinhos, não sei por quanto tempo. preciso reparar que, além de tudo, também é parar duas vezes e olhar atentamente. obrigada demais pela companhia e alegria diárias. continuo postando por aqui e por ali.


23.03.2021

hoje é dia de alienação, bebê. série ruim, horrível mesmo na netflix, a jornada dos heróis: adorando. compras no supermercado online, folha tripla ou dupla de papel higiênico, queijo fatiado ou inteiro, arroz parboilizado ou não. ligação pro pão de açúcar pra saber se aceitam ticket alimentação. almoço bem farto pra samba leleca e festinha com muitos biscoitos. café com chocolate. amor pelos alunos com uma emoção que é ver os olhos da julia, a foto do quarto dela arrumado, a brincadeira de definir água e pera para um et. o david me explica a aula de inglês que ele tá inventando e eu amo as figurinhas do moro motorista de uber. mando todas pra um monte de gente. vejo e revejo o gilmar dando bronca no cassio conká e vou tomar cerveja porque o monstrão não ganha todas, não vai ganhar. a samba dorme embaixo da escrivaninha, o ventilador está na velocidade dois, estou suada de abdominais e a noite cai, confirmando que o tempo, mesmo que abalroado, passa. tudo passa.


20.06.2021

quinhentas mil escovas com cerdas gastas. quinhentos mil travesseiros mais fundos no lugar da cabeça. quinhentas mil canetas com carga pela metade. quinhentos mil pares de meias com um furo. quinhentas mil carteiras de identidade com plástico amassado. quinhentas mil fotografias não muito boas. quinhentos mil projetos sobre o que fazer nas férias. quinhentos mil emails apagados. quinhentas mil raivas não transmitidas. quinhentos mil erros gramaticais. quinhentas mil coceiras, barba por fazer, cabelos tingidos, estojinhos de maquiagem, prestações a pagar, prateleiras com fotos, o que não foi dito, o que ainda deveria ser. quinhentos mil silêncios sobre o que, de tanto ódio, não se consegue dizer mas que vai ser dito por quinhentas mil pessoas e mais quinhentas mil e mais quinhentas mil a cada vez que o genocida matar mais uma escova de dentes.


16.08.2020

não quero oferecer uma esperança inócua
e animar, fugaz, uma fração da bolha
mas quero falar da frase da laurie anderson:
"sentir-se triste, mas não estar triste"
e sobre como ela consola e apazigua
o mito da tristeza permanente e insolúvel
a nós aparentemente acometida
senti-la apenas, sem sê-la
como a melancolia sinistra de walter benjamin
um salto para dentro da época
- época triste, sim, tristíssima -
e senti-lo é dever, conflagração, necessidade
mas saber que não se o é empurra
tristeza gravitacional, ímã do avesso,
bate no chão e volta para o teto,
talvez o fure (o teto)
e no horizonte ainda quase invisível do porvir
ameace a obscuridão


21.06.2020

se eu fosse solteira, gostaria de paquerar pelo tinder. queria conhecer uma pessoa que dissesse que só casaria comigo se morássemos no terceiro andar, como disse um cara para uma amiga minha. que tem coceira no dedão do pé e por isso precisa dormir de meia. que ri quando ouve a palavra carcomida, mas não sabe por quê. que está tentando parar de fumar, não consegue e nem por isso suporta quem cheire a cigarro. que tem mania de usar echarpes de cores diferentes, mesmo quando está calor. que desenha, toca instrumentos, escreve e joga futebol, mas tudo meio mal. que usa aparelho porque tem as arcadas muito desiguais, mas que beija bem mesmo assim. que tem cifose aguda, o que o faz raspar as costas nas paredes. que tem seis filhos de casamentos diferentes, mas que são todos bonzinhos. que comprou um carro, mas que não sabe dirigir. que é apolítico, só para eu dar um chilique. que é muito narigudo, mas que o nariz tem papel fundamental no caráter. que não é religioso, mas gosta de uma mandinga. que é muito religioso, mas não exige que a esposa também o seja. que tem manias secretas e inconfessáveis, mas nada desabonador. que usa a palavra desabonador o tempo todo e mesmo assim é legal. que só está usando o tinder como experiência antropológica.

quem ama a rosa suporta as espinhas.