Cula-cula
09 de junho 2021
Por Noemi Jaffe para Blog da Companhia
Se eu não fosse escritora, seria relojoeira. Teria um guichê pequeno numa galeria estreita de Osaka e consertaria relógios com umas ferramentinhas que eu teria desenvolvido e que seriam disputadas por concorrentes invejosos, além de lupas feitas com lentes alemãs, que eu revezaria de olho em olho. Entre meus clientes estariam reis e pastores, escritores e misses de todos os países. Eu seria muito rica e, por isso, saberia de quem cobrar e a quem franquear meus serviços. De vez em quando eu ajustaria alguns relógios propositalmente errados, porque saberia que aquela mulher precisaria acordar mais cedo para não ser demitida, ou aquele homem precisaria chegar adiantado ao encontro com a mulher que ele amava.
Ou então nada disso. Seria uma linguista e trabalharia numa universidade na Índia, em Ahmedabad, onde estudaria sânscrito antigo, estabelecendo relações entre ele e as línguas modernas do médio oriente. Esses estudos não teriam finalidade alguma, salvo serem lidos por mais três ou quatro especialistas como eu no resto do mundo, com quem eu teria encontros a cada dois anos, quando então compararíamos nossos resultados completamente inúteis e nos felicitaríamos com palavras de línguas desconhecidas, como cula-cula ou tristrotreu, fazendo reverências arcanas combinadas com gestos modernos.
Que bobagem. Eu seria botânica e pesquisaria, com base no livro “Prosa do Observatório”, do Cortázar, o ciclo misterioso das enguias e enfim descobriria onde elas se escondem antes de iniciarem sua jornada, a cada sete anos, na direção do Mar dos Sargaços, para lá se reproduzirem. Como os fósseis desses eurialinos têm mais de cem milhões de anos e coincidem com o tempo dos dinossauros, eu teria conhecido um especialista nesses animais gigantes e teria me casado com ele. À noite, sob a lareira, discutiríamos sobre coisas grandes e pequenas, como grãos de açúcar e estrelas cadentes.
Pensando bem, não. Seria uma pastora nômade tuaregue, vagueando pelo Máli, Nigéria e Burkina Fasso. Escreveria o tifinague, falaria berbere e seria uma tamajaq imuhag. Seria uma das poucas a saber escrever perfeitamente em tifinague, de cima para baixo e sem o uso das vogais, o que levaria alguns indivíduos da comunidade a duvidar de algumas interpretações de antigas inscrições fenícias. De qualquer modo, eu me congratularia com a geração mais jovem de berberes, que teria modernizado o alfabeto e não oporia resistência a mudanças que permitissem divulgar e espalhar a nossa língua e escrita. Meu rebanho de cabras sempre me acompanharia onde quer que eu fosse.
Finalmente, seria uma DJ num clube gay de Berlim. Faria mixagens de Bach com Beck e de Chopin com Velvet Underground. Os convidados das minhas festas inventariam uma dança que seria feita só com os dedos e os olhos e o resto do corpo parado. Haveria raves de 3 minutos e também de horas e horas, regadas com drinks feitos de graviola e cachaça ou de vodka e flor de sal. Sorvete seria servido o tempo todo, em taças coloridas e engraçadas.
Se eu não fosse escritora, pelo jeito, gostaria mesmo é de ser escritora, para poder inventar tudo o que eu não seria se não fosse o que sou.
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