Mulher chora a pandemia ao som de Marina Lima

17 de outubro de 2020

Por Noemi Jaffe no caderno Ilustríssima

 

Foi quando ouviu “de um liquidificador” que ela chorou. Com “beija-flor” e com “terra” não tinha ainda nem sinal de lágrima e foi no tempo entre a Marina Lima cantar um verso e outro que ela chorou a pandemia. O liquidificador era ela e ela tinha engravidado da morte da mãe, da tentativa de suicídio do amigo e das vírgulas que ela era obrigada a colocar nessa frase. Estar grávida era “dar conta” e, no choro, veio conseguir dar conta de tudo e uma vontade de por favor não conseguir dar conta de nada e veio o amor e o sexo feito não feito e as comidas que ela tinha cozinhado e as que ela não tinha, a culpa e a vergonha que ela sentia por sentir culpa. A Marina era a voz tremida de rebeldia serena, o rock opaco “e vou parir um terremoto, uma locomotiva a vapor, um corredor”. Ela chorava os meses, os produtos de limpeza, um verbo mal conjugado, uma rima toante. Ela não gritava, só soluçava meio baixo e as lágrimas iam manchando a blusa dela e o braço do namorado, que a apertava forte. Ela não pensou na letra “esperando um furacão, um fio de cabelo, uma bolha de sabão”. Só agora, enquanto escrevia sobre a música e o choro, foi que ela pensou que “esperar” é estar grávida e ela entendeu que chorou a espera, a espera dela e a de todos, mesmo sem ter sido autorizada a chorar por eles. Ela estava grávida da Marina Lima e do seu próprio soluço, estava grávida de brasil, estava grávida das letras minúsculas e do horror, do leblon e das cotas raciais, das armas e das igrejas, do nome que ela não conseguia pronunciar de tanto ódio, dos amigos desabraçados e das discordâncias com a filha, do instagram e da torta com farinha de grão de bico, do livro que ela tinha lançado e das vontades de fazer sucesso, da derrota e da Anne Carson, dos alunos e do dinheiro. Ela estava grávida, esperando um palhaço, uma acrobata, um leão amestrado que pula dentro de círculos de fogo, uma bailarina que monta sobre um cavalo dócil e que, do nada, dá um coice no diretor do circo. Na música tinha um saxofone fazendo piruetas e era um saxofone desses de fazer chorar, justo antes da Marina cantar “quando a noite contrair e quando o sol dilatar vou dar a luz”. E ela nem lembrou, só agora, escrevendo, que dar a luz pode ser escrito com crase ou sem e que com crase ela entrega a criança à luz e que sem crase ela oferta a própria luz ao mundo. Ela foi a Marina depois que a música acabou e então se levantou da cama enxugando as lágrimas e dançou sem alarde pela casa imitando aquela voz e fez o gesto da guitarra e depois do saxofone e o namorado riu um pouco e ela desceu as escadas até a cozinha e pegou um copo d’água porque fazia muito calor e amanhã, amanhã ela