Os ponteiros do relógio

Um poeta à espera da polícia

 

Janeiro de 2020

Por Noemi Jaffe para Revista Piauí

 

Quando você vive ao lado de uma pessoa paranoica, você também é obrigado a sê-lo, porque não é mais possível enxergar as coisas simples, uma roupa, uma panela, uma galinha

Quando você vive ao lado de uma pessoa paranoica, você também é obrigado a sê-lo, porque não é mais possível enxergar as coisas simples, uma roupa, uma panela, uma galinha CREDITO: RIA HILLS

Anna Akhmátova estava com a roupa errada para a temperatura de Moscou e, além disso, também irritada, porque, desajeitado como sempre, seu filho não tinha conseguido encontrá-la na estação. E não era só por isso, mas porque ela preferia que Osip[1] fosse buscá-la e que eles então viessem de lá até nossa casa contando piadas idiotas um para o outro. Sabe por que os judeus têm nariz grande? Porque o ar é de graça. Ou: um rato começa a correr loucamente e outro rato, correndo atrás dele, pergunta, por que você está nessa correria? E aí ele responde que ouviu dizer que os camelos vão ser castrados. Mas você não é um camelo! Está certo, então tente provar isso para a polícia! Ela era apressada enquanto Osip era lento e um tentava convencer o outro de que a sua velocidade era a mais certa.

Mas, naquele dia, o clima não comportava muitas piadas e, enquanto esperávamos por algo que fatalmente iria acontecer, sem entender exatamente o porquê, nem como, nem quando, Osip saiu à procura de alguma coisa para oferecer a Anna. Ela nem fazia questão de nada, mas para Osip era essencial manter a dignidade de um anfitrião. Talvez os costumes nos salvassem de nos transformarmos em bestas e, de qualquer forma, era bom sair atrás de algo, em vez de ficar parado em casa aguardando a polícia. Não tínhamos absolutamente nada na cozinha, nem um pepino ou uma batata, luxos de que não sentíamos mais falta.

Osip voltou carregando um único ovo, que segurava com cuidado e caprichosamente, um bibelô de porcelana. O ovo ficou lá, parado, depois que eu o cozi por alguns minutos na água. Descascado e quieto. Anna não tocou nele, nem eu, nem Osip. Parecia bom somente tê-lo por perto e poder observá-lo, branco como uma bola de neve, naquele calor de Moscou.

Nós três sentados no santuário – o nome que dávamos à nossa cozinha – parados, esperando o inevitável, que poderia vir naquele dia ou no dia seguinte, mas que viria, e o ovo junto, como se esperasse conosco, pactuando da nossa angústia. Nessas horas, nunca sei se o melhor é que a desgraça chegue logo ou que demore. Talvez eu prefira que a polícia chegue depressa, diga a que veio, vasculhe, torture e dê seus motivos falsos ou verdadeiros e depois parta, dando um intervalo mais longo para a próxima investida, apesar de nunca sabermos se, daquela vez, Osip seria levado para sempre ou por alguns dias.

Quem sabe até Anna pudesse ser levada. Mesmo assim, ela ainda vinha à nossa casa. Não era uma forma de masoquismo nem a prova de uma amizade fiel, que arrisca a própria vida para ficar junto de nós. Não. Era só a vontade de estar perto, sem motivo claro. Isso e pronto. O mesmo que faríamos com ela, sem pestanejar, sem pensarmos nas nossas vidas, a coisa menos importante nessa hora. O importante mesmo era que eles não encontrassem o que buscavam: o poema sobre o georgiano imbecil, que, aliás, eles nunca encontrariam, porque Osip nunca o escreveu em lugar nenhum.[2] Mas pode ser que não encontrar fosse ainda pior, porque nesse caso todo o resto se tornaria suspeito, todos os versos que eles jamais entenderiam seriam indícios de contravenção, todas as metáforas obscuras seriam alusões ao regime e nossa casa se transformaria num foco de perseguição.

O certo era que Osip tinha sido denunciado, que já tínhamos percebido a presença de espiões por toda a parte, sempre pessimamente disfarçados. Não sei por que eles ainda se preocupavam em se disfarçar, já que distinguíamos um espia só de olhá-lo de relance. Vizinhos que vinham se oferecer para nos ajudar sem motivo nenhum; porteiros que surgiam da noite para o dia e ficavam lendo o jornal com os olhos vidrados em nós; poetas desconhecidos que apareciam em casa, jurando amor a Osip e que ficavam horas recitando poemas de cor, sem aceitar nenhuma de nossas indiretas para que fossem embora; eletricistas e encanadores que vinham oferecer serviços desnecessários; escritores que vinham verificar as condições de nosso apartamento, como se eles se importassem com isso; pessoas vindo averiguar nosso cupom de ração semanal, para saber se estávamos nos alimentando bem. O comportamento dessa gente era tão artificial que chegávamos a rir entre nós e até para o próprio espião, penalizados do amadorismo e do ridículo a que eram obrigados a se sujeitar. Por que aceitavam esse papel? É claro que havia os convictos, não poucos, que até deviam se oferecer para nos perseguir e que se sentiam realizados e dignos com o cumprimento fiel de sua missão cívica. Mas era perceptível, pelo mal-estar de vários deles, que a incumbência era mais uma obrigação do que outra coisa. Hesitavam, gaguejavam, olhavam para o outro lado, quase pediam para ser descobertos e para não dizermos coisas comprometedoras, para que nós os salvássemos e não o contrário. O que inclusive aconteceu algumas vezes, quando dizíamos coisas irrelevantes, só para que eles tivessem algo a reportar, mas que não nos comprometesse demais, e eles pudessem ficar quites com o governo. Nunca entendi por que aceitavam. Certamente diriam que era pela família, que não queriam correr riscos mais graves e que seriam eles os perseguidos se não aceitassem se disfarçar, mas essa desculpa nunca me convenceu completamente. Não tive filhos, por opção, então não posso dizer o que eu mesma faria se eles fossem ameaçados de morte. Talvez eu também aceitasse me tornar uma espiã. Mas existe certa pressa em ceder à pressão, parece que os espiões esperam que o regime dirija ameaças a suas famílias, para que eles prontamente possam se disfarçar e fazer o mal necessário. Ah, mas e a família, e a casa, a ração, as roupas, o sindicato? Está certo que eu faço parte daqueles que sofreram as perseguições mais duras, mas não entendo a expressão “mal necessário”. Se é mal, não é necessário, e se é necessário, não pode ser mal.

 

Osip tinha declamado o poema, já tínhamos contado inúmeras vezes, para apenas dez pessoas; uma das coisas mais idiotas e vaidosas que ele fez e que pode ter nos custado a vida. Certamente a dele. Como era possível que uma dessas pessoas tivesse decorado o poema, copiado e mostrado a alguém próximo a Stálin? E quem poderia ter feito isso? Mas aconteceu e agora o dia de virem nos visitar estava próximo. Podíamos sentir no ar espesso que respirávamos, no silêncio e também nos barulhos à nossa volta, nos telefonemas mudos que recebíamos, nas visitas inesperadas que ficavam e ficavam, nos olhares das pessoas na rua. Era insuportável.

Só chegaram depois da meia-noite, na hora em que tínhamos decidido dormir, nós no nosso quartinho e Anna na cozinha, espremida entre o fogareiro e o armário, sobre um amontoado de roupas que servia de colchão. O ovo parado em cima da mesa.

Muitos de uma vez, uniformes ocupando o apartamento, chapéus e botas, casacos até os joelhos, apertando, espremendo, apalpando os bolsos, as costas, as pernas, atrás de armas e bilhetes, documentos e dinheiro. Era a chamada operação noturna, propositalmente escolhida pelos agentes para que as coisas ficassem mais perigosas e eles pudessem se divertir um pouco mais, com algum possível risco de resistência, ao que eles poderiam reagir e, quem sabe, atirar, ferir e até matar. Era o que tinha acontecido com Isaac Babel,[3] já doente e desarmado, mas que mesmo assim não cedera facilmente à polícia e, por isso, tinha levado uma coronhada tão violenta que acabou ficando com um buraco na cabeça até sua morte, alguns anos mais tarde.

E lá estávamos nós, também cansados, apalermados e sem resistir a nada, também diante da chance de sermos agredidos. Anna, para nós, era até uma espécie de álibi, porque eles não poderiam desaparecer com ela ou mesmo feri-la. Ela já era conhecida em todo o país e importante demais para isso.

Eram cinco. Três policiais e duas testemunhas, que ficaram sentadas, olhando, enquanto os três oficiais se distribuíam em tarefas específicas para passar a noite inteira revistando: um no quarto, um na cozinha e outro na sala. Reviraram panelas, livros, estantes, armários, tiraram todas as roupas, rasgaram, esvaziaram caixas, espalharam toda a papelada e as gavetas pelo chão, tiraram tacos do piso e o gesso do teto, arrancaram as molduras das janelas e os batentes das portas, leram cada nome, número e série em cada pedacinho de papel, todos os poemas de cabo a rabo atrás de algo comprometedor, uma palavra ou um nome, sem entenderem nada do que liam, até perguntarem a Osip que absurdo era aquele, para ele responder: realmente, que absurdo é esse? Eu não sei de onde ele tirava a coragem para uma ironia nessa hora, mas era como se fosse algo à sua revelia; criticar era mais forte do que se proteger. O policial não entendeu a piada, graças a Deus. Sei que eu e Anna gelamos juntas, Anna sem conseguir esconder um sorrisinho bobo, nesse pacto irônico que os dois tinham contra o mundo, como se fossem conseguir mudar alguma coisa com isso. Hoje concordo com os dois. É preciso manter alguma irracionalidade, alguma infantilidade quando você está sendo perseguido sem explicação. Não é possível ficar pensando estrategicamente ou manter a seriedade ou o desespero o tempo todo. Tínhamos formas de acreditar que a normalidade era possível e, entre eles dois, espirituosos e sardônicos, o humor fazia o papel de sanidade e até de sobrevivência. Se não mantivessem o riso diante do absurdo, cederiam a ele e perderiam a pouca força que tinham, Osip cardíaco e Anna viúva e com um filho preso.

Sem encontrarem o que buscavam, ficavam tentando encontrar metáforas em tudo: é-me querida a escolha livre/dos meus cuidados, dores e mágoas. O que ele queria dizer com isso e por acaso alguém o estava proibindo de sentir suas próprias dores? Osip suspirava.

Sentados, observávamos o movimento, pensando se levariam Osip com eles, e se, querendo ser mais inteligentes do que eram, tentariam interpretar alguma frase de forma fatal e então iríamos todos para a polícia ou direto para algum pelotão de fuzilamento. Nisso, Anna se lembrou do ovo, ainda inteiro na mesa que eu tinha montado sobre o fogareiro da cozinha. Estendeu-o a Osip, junto com o saleiro, milagrosamente cheio. Osip nem se importou de oferecê-lo de volta, de dizer que ele tinha buscado o ovo para que ela comesse; com cuidado e lento, como se estivesse em algum restaurante, salgou o ovo e pôs-se a comê-lo. Nós acompanhamos aquele momento juntas, praticamente mastigando o ovo com ele, aproveitando cada segundo como se fosse a eternidade, a brancura nos salvando instantaneamente da morte; a lentidão, do horror.

Os documentos entregues, Osip partiu com eles, a manhã clara na janela.

***

Depois da primeira tentativa de suicídio, Osip tinha certeza de que viriam matá-lo a qualquer momento no hospital. Em alguns dias, esse “qualquer momento” deixava de ser indeterminado e ganhava hora certa. O delírio era preciso, tanto quanto a obsessão, tão convincente que chegava até a nos convencer, a mim e a Natasha, a enfermeira em Cherdyn, no hospital onde ele passou quase duas semanas. Ele sabia perfeitamente quem era inofensivo, como os camponeses que circulavam pelos corredores, e quem era suspeito, quem eram os “outros”. A escolha parecia aleatória, mas ele tinha um sistema rígido de seleção, análise e decisão, que não compartilhava conosco. Ele apenas sabia. Os camponeses, tendo sido transportados sem segurança nem cuidados, perambulavam por todos os lados, cheios de escaras abertas e barbas enormes, e Natasha chegou a dizer que daria sua vida por eles, o que imediatamente fez com que Osip e eu passássemos a confiar cegamente nela. Ela me recomendou botas forradas para o inverno e que nós plantássemos algo, porque haveria carência de comida. Piada, já que nem que eu tivesse dinheiro conseguiria as tais das botas e, como nem tínhamos conseguido uma banheira para dormir, pensar em plantar batatas ou repolhos era risível.

Eu não acreditava mais que o delírio de Osip pudesse diminuir, muito menos terminar. No meio de um afastamento tão grande da realidade, é impossível imaginar que um dia as coisas vão voltar a ser como eram antes. Não vou usar a palavra “normal”, porque é a última palavra que eu poderia pronunciar. Mas imaginar que voltaríamos a, não sei, tomar chá, conversar sobre Stravinski ou tentar falar ao telefone com Aleksei e então reclamar do péssimo serviço de telefonia.

Achava que nunca mais ele sairia do hospital ou que nunca mais deixaria de temer qualquer pessoa que não o olhasse de frente e que eu, por isso, precisaria para sempre encontrar novas estratégias para mantê-lo vivo. No fundo, quando você vive ao lado de uma pessoa paranoica, você também é obrigado a sê-lo, porque não é mais possível enxergar as coisas simples, uma roupa, uma panela, uma galinha. Você acaba se tornando ainda mais medroso do que o doente, porque teme pelo temor dele. E é por isso que eu precisava tanto de alguém e essa pessoa era Natasha, que, não sei muito bem por quê, se apiedou de nós dois. Era magra, com o rosto de uma intelectual do século XIX, os óculos caindo no nariz, e parecia que precisava nos ajudar. Me assegurava, assim como outros exilados, que Osip ficaria bem, que seu delírio era esperado para quem passou pela polícia.

O aprendizado era: “Não espere nada e esteja pronta para qualquer coisa.” Assim seria possível manter-me lúcida e ajudar os outros a se manterem lúcidos também. Se posso dizer que aprendi mesmo alguma coisa que tenha valido a pena nesses anos todos, algo que eu possa ensinar para quem vem me visitar, é a não ter esperanças ou, pior ainda, a não alimentar esperanças, uma metáfora estranha que se habituaram a usar, como se a esperança tivesse fome. E ela tem mesmo.

A esperança quer engolir todos e ficam todos vivendo para alimentá-la, até que ela engorde, se torne obesa, exploda e seus cacos se espalhem por aí, para que todos fiquem catando pedacinhos, restos de esperanças engorduradas, e continuem alimentando-os e o processo nunca termine, a esperança nunca se transforme em realidade e só faça esvaziar e desnutrir quem a abastece. Talvez seja essa a razão para terem me dado esse nome ou talvez esse nome seja a razão da minha incompatibilidade com ela.[4] Mas não; foi o excesso dela que me fez detestá-la. Não esperar nada é o que de melhor alguém pode fazer contra qualquer tipo de opressão e só assim fui capaz de sobreviver a tudo.

No nosso caso, a ordem dada pelo Kremlin era “isolem mas preservem”, três palavras que me acompanham até hoje, todos os dias, em muitas situações diferentes.

Eu sempre me perguntava se isso era bom ou ruim. Significava que teríamos privilégios ou que seríamos ainda mais torturados? Eu não sabia. Podia ser uma frase enganadora, que nos manteria agarrados a uma esperança, mas que justamente por isso nos arrastaria por mais tempo, cada vez mais enfraquecidos, até que morrêssemos por conta própria, sem que o Regime tivesse que mexer uma palha para nos exterminar. Como preservar e isolar ao mesmo tempo? Era uma frase contraditória e, justamente por causa dessa ambiguidade, eu achava que ela poderia nos proteger de algo pior. Mas pessoas em condições semelhantes, e Cherdyn era um vilarejo lotado de exilados, me garantiram que ela não significava nada, além de mais uma frase para desviar o foragido de sua condição real.

Num dos delírios mais obstinados de Osip, naquela sua paranoia sistemática, ele nos garantiu que, naquele dia, a polícia viria matá-lo às seis horas da tarde. Ele alternava calma diante da morte e uma tensão enorme, chegando a gritar e gemer, pedindo que eles chegassem logo, porque ele não estava suportando esperar. Nós perguntávamos como ele sabia o horário exato e ele só dizia saber, ele sabia, era certo, eles não se enganavam, gostavam de torturar com pontualidade, não viriam de manhã justamente para deixá-lo esperando. Mas como eles o matariam? Com uma arma, é claro. Mas dentro do hospital, na frente de todos os outros? Ele não sabia tantos detalhes, se o levariam embora ou se seria lá mesmo, mas isso não tinha tanta importância.

Natasha e eu, praticamente sem combinarmos nada, entendemos que o melhor a fazer, perto do fim da tarde, era mudar os ponteiros do relógio. Como Osip não fazia ideia das horas, naquele estado de agitação, mostramos, sorrindo mas bem firmes, que já passava das sete e eles não tinham vindo. Ele nem pestanejou. Não disse que isso era proposital ou que eles estavam atrasados para torturá-lo ainda mais, e nem desconfiou que nós tivéssemos alterado as horas. Não imaginou um conluio entre nós duas. Simplesmente aceitou, se acalmou e disse que tinha se enganado. Isso o ajudou a se curar mais rápido e a se dar conta do delírio.

Essa mentira infantil e necessária criou um vínculo que eu poderia até chamar de amoroso entre nós. Um acerto silencioso, em que nós duas concordávamos que ficar caladas era o melhor que podíamos fazer por ele e uma pela outra.

A enfermeira foi presa e levada para Kolimá, certamente pela ajuda abnegada que prestava a todos. Era uma pessoa rara, visivelmente intelectualizada, mas nem um pouco menos livre por isso, como acontecia com tantos intelectuais que conheci, que se desculpavam de sua inação medrosa com sua erudição e alto conhecimento de filosofia. No final, seu destino foi ainda pior do que o nosso, pois tudo o que ela fazia era ajudar os perseguidos, sem ter feito nada para merecer uma acusação. No campo de refugiados ela contou a história do relógio em detalhes para uma amiga escritora que, depois de vinte anos presa, voltou à sua cidade, onde recebeu um apartamento no mesmo prédio de Anna Akhmátova, onde, por acaso, eu a encontrei e onde ela, ainda por acaso, me contou a história que a enfermeira tinha contado a ela. A da mudança dos ponteiros do relógio. Natasha morreu doente no campo.

Mudamos os ponteiros do relógio e, algum tempo depois, ela morreu. Eu estou viva, fiquei sabendo dessa história por acaso – coincidências, aqui na Rússia, nunca são exatamente coincidências – e estou o tempo todo ainda tentando mudar os ponteiros. Não tenho mais relógios grandes como aquele do hospital, não consigo alterar as máquinas dos relógios de pulso ou de mesa, mas sigo tentando. De alguma forma, essa história ter voltado até mim, ela ter contado tudo a uma companheira de prisão, mostrando o quanto essa brincadeira tinha sido importante para ela, é também um jeito de continuar mudando os ponteiros. As histórias que voltam e vão, agarrando-se sozinhas às pessoas, precisando conti-nuar, circulando pelo mundo em versões diferentes, é isso que garante que o tempo passe ou não passe e que eu continue aqui, contando coisas que não dependem tanto de mim, mas sim eu delas.

Osip se foi e a enfermeira também, mas eu não. Ou o contrário. Eu é que parti e eles continuam aqui, porque minha presença desse lado da morte é ouvir as histórias sobre eles que chegam até mim e então contá-las. Eles ficam, eu desapareço. Não sei quem está e quem não, manipulo o tempo o tempo todo para que eu também não enlouqueça.


Trecho do livro O Que Ela Sussurra, a ser lançado em março pela Companhia das Letras.

[1] Osip Mandelstam, poeta russo que viveu entre 1891 e 1938. Foi amigo da também poeta Anna Akhmátova e marido da escritora Nadezhda Mandelstam, que narra este texto.

[2] Osip Mandelstam criou um poema contra Josef Stálin e o declamou somente para algumas pessoas, sem jamais tê-lo escrito.

[3] Jornalista e escritor russo, que morreu em 1940, aos 45 anos.

[4] Nadezhda, o prenome da narradora, significa “esperança” em russo.

 

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/os-ponteiros-do-relogio/