Polpa
6 de Janeiro de 2021
Por Noemi Jaffe no Blog Cia. das Letras
Novo, pelo uso que nos habituamos a fazer dele, costuma se opor a velho. Não é por acaso que dizemos, no ano que se inicia, feliz ano novo e adeus ano velho. Nesse adeus da expressão, significamos um subentendido já vai tarde que, aposto ao velho, carrega também este último de conotações negativas.
Mas novo, para ser bom – e o mais impensável, feliz – não precisa se opor a velho. Antes o contrário. Um ano novo que, digamos, seja como uma compota feita com frutas já não tão frescas, seria um bom ano. Colocamos os pêssegos e ameixas mais enrugadinhos e adicionamos um limão bem verde e ácido, novo, compondo assim um sabor agridoce inesperado. Cabe bem em qualquer ano que se inicia.
Ou então, pode-se pensar na ideia de um ninho, feito de gravetos caídos, fios de nylon encontrados ao acaso, restos de algum uso, folhas caídas, tudo coisa velha, com que se monta uma estrutura engenhosa e sempre única, onde vão crescer ovos novos, criando o que se costuma conhecer como feliz ano n’ovo. Aliás, ver o ovo como o viu Clarice Lispector, em O ovo e a galinha e ser capaz de espantar-se com o que já se conhece, é bem o que quero dizer com a novidade que abrindo-se, descascando-se, contém o velho e vice-versa. Tim Ingold (minha mais recente descoberta na antropologia) diferencia, em Estar Vivo, entre a surpresa e o espanto. Diz que a surpresa é matéria de contabilidade, quando algo escapa a um controle previsto. Já o espanto é de outra natureza: é possível espantar-se com uma xícara de café, com o gato que você já conhece e com um ano que se inicia. Não é necessário nada de tão espetacular para que ocorra o espanto, essa matéria-prima em extinção. Modesto Carone já disse, comentando Kafka, que o espantoso é que o espantoso não espanta mais.
É certo, entretanto, que 2020 é um ano, esse sim, que todos querem ver bem longe, à distância. Nunca vivemos um trauma coletivo tão amplo e fundo como esse, aqui no Brasil multiplicado pelo desgoverno que nos conduz ao abismo.
Mas e se, para 2021, pensássemos em um 2020 que fosse possível torcer como uma roupa molhada, espremer numa máquina de fazer suco, para dele extrair um sumo? Tipo polpa de 2020.
E o que haveria nessa polpa? Para mim, todos os filmes de Fellini e de Tarkovsky, nhoque de mandioquinha, carne de panela, a Ilíada, 2666, de Bolaño, Herzog, de Saul Bellow, aulas por zoom com gente de todo o país, minha cachorra e minha gata, poucos almoços feitos em casa com meus filhos e agregados. Para o país, algumas poucas iniciativas de fazer oposição e de se organizar para permitir que a ciência tenha a voz que deve ter, além da percepção do tamanho do mal que foi alçado à nossa liderança.
O mais provável é que muito pouca coisa mude realmente no ano novo que, na verdade, só é novo porque um novo ciclo de translação se inicia. Pandêmica e politicamente, para que haja novidades, será preciso que descasquemos 2021 com delicadeza para encontrarmos, por baixo de sua película, gomos que vêm ao menos desde 2013, com a chance de uns carocinhos nascentes.
Vamos plantá-los com espanto.
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