Um homem

18 de maio 2022

Por Noemi Jaffe para Blog da Companhia 

 

Em New Bedford, cidadezinha do interior de Massachussets, que já foi a segunda cidade mais rica dos Estados Unidos, por causa da extração do óleo de baleia, abundante por lá – a cidade é um porto, de onde partiam os barcos baleeiros no século XIX e, por isso, tem grande quantidade de portugueses e açorianos – encontrei um sebo. A cidade, hoje, é uma das mais pobres de um estado muito rico, onde ficam Boston e Harvard, só para citar alguns exemplos. Uma cidade pequeníssima, com população majoritariamente conservadora, casas de madeira pintadas de branco e muitas reminiscências de Herman Melville, que morou por lá e de Moby Dick, que também deve ter morado pelas redondezas. As principais atrações são o porto, de onde se avista o nome Nantucket, nome mítico e que nos lança para dentro de um livro, mas que está lá, à nossa frente e o fantástico Museu das Baleias, um prédio enorme, com inúmeros esqueletos de inúmeras baleias, o maior barco baleeiro em museu no mundo inteiro, memórias da época de ouro da pesca e tantas, mas tantas histórias e objetos baleísticos, que o visitante sai de lá com vontade de mergulhar, de sonhar com baleias e de sair num daqueles barcos atrás de uma aventura errante pelo mar.

Mas foi lá que encontrei um sebo, pelo qual, a princípio, não dei nada. Mas, sendo um sebo, subi. Uma entrada estreitíssima, escadas mais estreitas ainda, que davam para uma porta lateral, velha e carcomida. Dentro, prateleiras de madeira meio bambas, livros espalhados pelo chão, mas todos misteriosamente bons. Digo misteriosamente porque eles não eram de um bom óbvio, mas imprevisto. Shakespeare com Marx, James Joyce com Humboldt, livros sobre a história da pesca com mapas antigos, Modigliani com Nathaniel Hawthorne. Nada era descartável, nenhum best seller, tudo num silêncio de quem nem se importa muito em ser comprado e se satisfaz em pertencer àquele lugar, naquelas companhias.

O dono, um senhor de uns setenta anos, narigudo, com a cabeça baixa, lendo, unhas sujas, que, quando eu perguntei se ele tinha postais, apareceu com uma pilha de postais velhos e os foi visitando comigo, um por um e se surpreendendo com cada um deles, como se não os conhecesse ou às paisagens que a pilha ia descortinando. Olha, um Rembrandt, gosto muito desse pintor, você conhece? Olha, Philadelphia, faz décadas que não vou para lá. Essas conchas, como são bonitas as conchas. Selecionei seis e ele cobrou 1 dólar por todos. Dei uma nota de vinte e ele me deu o troco em dinheiro, que tirou de uma carteira gasta, transbordando de notas. Estou aqui há quarenta anos. Venho de manhã, vendo alguma coisa e às cinco volto para casa. Passo o dia lendo. Quando disse que o sebo era lindo e especial, ele me agradeceu sem ênfase, mas com uma expressão de reconhecimento tão sincera, que fiquei feliz junto com ele pelo que ele tinha construído.

De tarde, da janela do hotel, eu o vi trancando o sebo, encurvado e saindo pela rua arrastando um carrinho de feira cheio de livros. Andava pela rua como um Jonas e pensei que, provavelmente, ele dormiria dentro da boca de uma das baleias do museu, que fica a três quadras dali.

Já em Nova Iorque, no olho do furacão consumista, lembrei dele. Não vou falar a besteira esperada: esse homem dribla o capitalismo. Mas eis que sim, vou falar a besteira esperada: o tempo desse homem, como o tempo das baleias, fez uma cama na minha alma. Uma cama, um vale, um recife e me prometi lembrar dele, sempre que não tiver tempo para nada.

 

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