29.04.2020

ontem atingi o pico de popularidade e agora vou ter que lidar com a síndrome do gênio interrompido, porque nunca mais vou conseguir escrever a mesma coisa. só se eu repetisse o post, como o pierre menard do borges. vou ter que lidar com o fracasso, esporte favorito dos brasileiros. podíamos inventar o defeatball: onze pessoas de cada lado, paradas e uma bola rolando sozinha, entrando continuamente num gol sem goleiro. credo. as aulas online, com todos pegando o microfone, um de cada vez e falando suas impressões, são como uma graça do humano comungando o humano. graça, que quer dizer: graciosidade, gratuidade, bênção e riso, todas a mesma coisa, na verdade. humanos somos graciosos, engraçados, gratuitos e agraciados e por isso existimos. os sem graça são os desgraçados, para quem não existe almoço grátis. ixi, exagerei nas associações lexicais e não quero virar freira. tirei folhas secas da grama com um ancinho, instrumento que nunca tinha usado. ancinho, cif cremoso, escova de privada, flanela. coisas em si, praticamente metafísicas.


28.04.2020

fiquei bêbada e daí fico chata, repetindo as coisas e só querendo comer muito chocolate, que não tem aqui em casa, então comi três bis que eu tinha guardado no freezer. mas eu não acho que fico tão chata assim. a leda me marcou num sorteio pra ganhar uma panela le creuset no dia das mães e ela nem mãe é. se eu ganhar, dou a tampa pra ela. cansados de ouvir o governante de seu país rosnar, arrulhar, grunhir e tonitruar boçalidades bósticas, o povo, mesmo doente, mesmo confinado, mesmo fodido, rugiu. e o governante morreu afogado numa piscina de cloroquina e desinfetante, gritando, i love you trump, enquanto sua mulher desligava o aquecimento central. e os livros saíram das bibliotecas, os vinis das estantes, as tintas dos frascos, as crianças das camas e, juntos, entoaram uma canção de amor às plantas e aos animais, à terra e à montanha e isso não era um sonho e o dia amanheceu em paz. lancei meu livro que não tinha lançado ainda e quando isso tudo acabar vocês vão ver, mas vamos juntos sussurrar que a verdade acabou, a justiça morreu e agora só sobraram um fósforo, uns grilos e uma voz, que diz assim: é por aqui, gente, olha que bonito esse caminho.


13.04.2020

o joão e eu gostamos muito da loja melinda & julius, que fica perto de casa. em primeiro lugar, é claro, por causa do nome, pois quem não há de gostar de uma loja com esse nome? mas também porque ela vende produtos orgânicos, naturais e variados e tem o ênio, o dono, que sabe tudo sobre tudo. se alguma coisa quebra aqui em casa, a gente diz que o ênio vai saber arrumar. se sentimos muita angústia, o ênio vai resolver. precisamos do ênio. ênio, por favor, hoje eu escrevi um texto importante, gravei um vídeo, corrigi cinco textos, preparei aula, respondi uns vinte emails, uns trezentos whatapps e almocei o pastelzinho de shimeji que comprei na tua loja, junto com tabule que eu fiz e arroz. acabei de dar aula agora, falei e falei e queria que você pudesse vir aqui ver se dava um jeito no pó que ficou na mesa, nas pétalas caídas no quintal, no almoço de amanhã e na minha carroça interior, que é como o naziazeno define seu desespero, no livro os ratos, que hoje, na aula, analisamos juntos. vem, ênio, por favor.


05.04.2020

sacrilégio, eu sei, mas às vezes acho a prosa do josé paulo paes melhor do que a do antonio candido. as palavras do candido se assentam como tubérculos, enquanto as do paes saltitam que nem pipoca: e vem um "dúplice", um "escapulir", um "desgracioso" e a gente fica só olhando os milhos se transformarem. e sabem onde o bolaño e o tolstoi se encostam? no exercício pros braços com pesinho que a adriana nunes manda pelo youtube. e como seria esse romance? vronski, no front napoleônico, acusado de estupro anal pelo delegado estebán, de cochuacán. o ignóbil jejua, cinquenta e nove por cento não desejam sua renúncia e nossa esperança mendiga recua. o remédio é dar, doar-se, entregar-se, buscar canais de assistência, envolver-se na ajuda ao próximo. próximo: o que está perto, mesmo que longe.


04.04.2020

nunca gostei do ditado "fazer do limão uma limonada". deixe o limão ser o limão, na sua verdidão amarga, na necessária acritude que ele empresta a tudo. e o sentido embutido na frase é de que é preciso transformar o suposto ruim, ou aparentemente improdutivo, em algo melhor, mais saboroso. pensei hoje que é tempo da preposição "em", mais do que da sua prima "para", finalista e resultadeira. cair em si, ficar em casa, olhando os limões. ontem vimos mais um do joseph losey, o criado, com esse ator dirk bogarde, um nome que meu pai repetia sempre, assim como rita hayworth, ingrid bergman e anthony quinn. mas tinha também a elba ramalho. meu pai adorava as pernas da elba ramalho. nunca gostei muito dela e uma vez sonhei que ela era uma roda gigante.