29.05.2020

respondi no twitter do sinistro da educação, que comparou a apreensão de vinte e nove celulares com o nazismo. se tem uma coisa que me pega pelo nervo trigêmeo do fígado é falar de nazismo, é fazer qualquer comparação com nazismo. não adiantou de nada, claro, como nada adianta, mas distensionou um pouco o nervo, que estava inflamado. depois dessa tarefa não hercúlea, mas sisífica, lavei a louça e fiz feijão. quase terminando o rastro dos cantos, do bruce chatwin, sonho com um nomadismo interno, em que me desloco de um canto a outro do corpo, cantando os rastros que as pegadas do tempo deixaram em cada parte: aqui a vacina contra sarampo, aqui o machucado de quando fui arrastada por um cachorro, aqui a cicatriz da gravidez tubária, aqui o fio de barba de bruxa único no queixo, aqui o cascão do calcanhar seco, aqui uma ferida no coração de uma fossa antiga e nunca completamente recuperada. de manhã conversei por quase duas horas com um amigo com quem achava que estava brigada. mas foi dizermos alô e desbrigamos tudo. tenho até medo de enunciar que alguma coisa parece estar se mexendo. ups, disse. deixar os caras com medo, desorientados. será que vai adiantar, meu deusinho, ou será que vai atrasar ainda mais esse relógio coarctado?


22.05.2020

há alguns anos eu já tinha falado sobre gelsomina, que ontem revi em "la strada", do fellini. gelsomina, você é o lastro de sonho sustentando o mundo. gelsomina, me socorre nessa colisão de feridas e malogros. gelsomina, pedregulho inábil que desorienta as réguas. gelsomina, me ensina a arregalar os olhos. gelsomina, me dá uma colherada de sopa da tua panelinha. gelsomina, me dá o abraço que o zampano não pode te dar. gelsomina, não chora mais. gelsomina, não sei tocar trompete, mas compro um e vamos aprender juntas a tocas as melodias do nino rota. gelsomina, se você viesse hoje aqui em casa, a gente dividia a pizza das sextas-feiras, você me ajudava a tirar os pelos da samba do tapete e fazia cócegas nela. gelsomina, você iria rir assistindo o jornal nacional e o vídeo da reunião ministerial, porque você iria ver que isso não é nada, você iria me dar uma bronca, onde já se viu se chatear com isso, mulher. gelsomina, você iria desligar a tv e me chamar para tocar mais trompete. gelsomina, toda meia-noite eu sonho com você, se você duvida eu vou sonhar pra você ver. gelsomina, quero ser ninguém como você, ninguém pra sempre, dormindo dentro da tua carroça com você e te auxiliando no toque do tambor: "e arrivato zampanò".


19.05.2020

hahahaha, quem for de direita toma cloroquina, quem for de esquerda toma tubaína. quem for de direita mata mil cento e setenta e nove pessoas em um dia, quem for de esquerda morre. quem for de direita mata o joão pedro, de quatorze anos, dentro de casa, quem for de esquerda assiste e fica quieto. quem for de esquerda fica reclamando que o felipe neto não é suficientemente inteligente pra ser de esquerda ou não suficientemente puro pra ser de esquerda. quem for de esquerda nem vai mais saber se é de esquerda, porque ser de esquerda, no brasil, tem sido mais um nome do que qualquer outra coisa. quem for de esquerda esqueça que é de esquerda, agora, e pense somente em encontrar caminhos para tirar o presidente que não é de direita nem de nada, mas de átomos tóxicos de merda misturada com cloroquina. quem for de esquerda, aprume seus ódios e amores e saia na janela gritando que não dá mais. quem for de esquerda, de centro, de centro-esquerda, de centro-direita e de direita, quem tiver ideologia, decência e dignidade, e não quiser que o mal continue colapsando nossas artérias e as do joão pedro e de mil cento e setenta e nove pessoas, se alevante e brigue. quem for de merda que vá à merda.


14.05.2020

você pega quinhentos gramas de acém e corta em cubos pequenos. daí você pica uma cebola inteira, três dentes de alho e uma cenoura e refoga os três últimos em umas três colheres de sopa de azeite. junta a carne, até que ela fique morena. acrescenta uma colher de chá de páprica, duas colheres de sopa de molho de soja (sem conservantes), umas três colheres de sopa de tomate pelado (de latinha), sal, pimenta do reino e dois copos de água. tampa a panela de pressão e, depois que a válvula começar a girar, deixa vinte minutos. meu deus, apareceu um tucano na janela. a gente não conseguia acreditar. ele parou no beiral e ficou lá, olhando, se coçando. nesse meio tempo, você pica umas três batatas médias. quando tirar a pressão, você acrescenta as batatas picadas e mais um pouco de água. a carne já deve estar macia e com um molho grosso e escuro. deixa mais dez minutos na pressão, serve imediatamente e você vai sentir um restauro bochornoso e acalmadiço no peito e nas mitocôndrias. o tucano voltou para o mesmo galho e ficou lá, sem medo da gente.