21.06.2020

se eu fosse solteira, gostaria de paquerar pelo tinder. queria conhecer uma pessoa que dissesse que só casaria comigo se morássemos no terceiro andar, como disse um cara para uma amiga minha. que tem coceira no dedão do pé e por isso precisa dormir de meia. que ri quando ouve a palavra carcomida, mas não sabe por quê. que está tentando parar de fumar, não consegue e nem por isso suporta quem cheire a cigarro. que tem mania de usar echarpes de cores diferentes, mesmo quando está calor. que desenha, toca instrumentos, escreve e joga futebol, mas tudo meio mal. que usa aparelho porque tem as arcadas muito desiguais, mas que beija bem mesmo assim. que tem cifose aguda, o que o faz raspar as costas nas paredes. que tem seis filhos de casamentos diferentes, mas que são todos bonzinhos. que comprou um carro, mas que não sabe dirigir. que é apolítico, só para eu dar um chilique. que é muito narigudo, mas que o nariz tem papel fundamental no caráter. que não é religioso, mas gosta de uma mandinga. que é muito religioso, mas não exige que a esposa também o seja. que tem manias secretas e inconfessáveis, mas nada desabonador. que usa a palavra desabonador o tempo todo e mesmo assim é legal. que só está usando o tinder como experiência antropológica.

quem ama a rosa suporta as espinhas.

16.06.2020

acordo sozinha, mais cedo. cozinha, suco de tudo, a samba quer sair, não pode porque acorda o joão, mas sai, late alto, ele acorda, panelinha de café pequeno, jornal, sabão de coco, plástico no lixo, torrada com geleia e queijo minas, sempre me espanto como o café da manhã é bom, todo dia igual mas não faz mal, gosto de poucas coisas sempre idênticas mas o café pode o mesmo até morrer, e a laranja bahia de sobremesa no almoço seguida de cafezinho com dois quadradinhos de chocolate, detesto chocolate que não vem dividido em quadradinhos. na aula de hoje, o importante é ter consciência da morte. um bom escritor deve saber que vai morrer. como se preocupar mais com o que se escreve do que com quem escreve? eu falo, mas não sei. a jeanne-marie gagnebin, assistindo uma vez ao programa mais você, da ana maria braga, disse pra que mais eu? queria um programa que chamasse mais o outro, mais eles, mas não mais eu. é esse o busílis, o áporo da questã. graças a deus o português tem o sujeito oculto e o verbo permite a flexão de pessoa. vocês já pensaram que o verbo tem flexão de pessoa, número e tempo? é demais para mim.


06.06.2020

não gosto da esperança e prefiro o desespero, que é a desistência da espera. hoje estou desesperada e, só por isso, ouvi um disco inteiro do dire straits e fiquei lembrando de oitenta e sete, quando ouvia esse disco e sonhava com coisas que não posso nem dizer. também fiz uma torta de espinafre e queijo feta, limpei os banheiros, imaginei minha mãe rezando na guerra, pintei as unhas, continuei lendo um livro sobre os pampas argentinos e comecei a ler outro sobre as interpretações do mito de adão e eva. não quero mais estar aqui, quero levar todas as pessoas legais para longe daqui e fundar uma escrevedeira kibutzica onde caibam todas as pessoas, que vão ficar ensinando e aprendendo e lendo e brincando e tudo de graça. e como nada disso vai acontecer, aumenta o desespero e só quero então que amanhã todos buzinem e ponham panos brancos nas janelas e aplaudam as torcidas que vão às ruas e que o Mal que nos governa seja esmagado pelo nosso grito e pelo nosso amor.


04.06.2020

ontem esqueci de escrever por aqui. acordei e lembrei. de certa forma gostei, porque isso não pode virar uma obrigação e um dia, nesse tempo opaco, quase nem existe. já faz uns dez anos que estudo a literatura de testemunho e as formas de dizer o indizível: o paradoxo de não ter como dizer e se ver obrigado a dizer. sempre fui filha de sobrevivente, mas hoje somos todos sobreviventes, nós, testemunhas do indizível: a patroa que mata o filho da empregada, a blogueira que diz que o racismo é inevitável porque os negros matam mais, o presidente que quer mais mortes de pobres e de idosos. estou dizendo tudo isso mas tudo isso não é dizível, não deveria fazer parte da língua. beckett, jabés e paul celan souberam fazer as palavras serem restos, fragmentos que pululam soltos, alheios à necessidade linear de fazer sentido, quando nada faz sentido. nunca se deve perguntar à obra de um deles o que ela quer dizer. querer dizer é tudo o que elas rejeitam. palavras testemunhas não querem dizer nada; são ruínas de falas mortas. "roucos, os relógios fortes dão razão à hora fendida". "com dentes de escrever, mastigar esse pão".
(versos de paul celan em tradução de celso fraga)


02.06.2020

o luis é um médico potiguar, coordenador de uma uti do sus. hoje ele disse que precisa escolher quem deixar morrer e é obrigado a escolher pessoas com mais de sessenta e cinco anos. metade dos doentes com insuficiência respiratória, submetidos ao ventilador, precisam de diálise e não existem pessoas suficientes que saibam operar as máquinas. faltam enfermeiros, faltam remédios. ninguém mais fala em cloroquina, nem os minions, ele disse. a maioria dos seus colegas médicos é bozonazista e ele não suporta mais. ele está cansado e não sabe se vai conseguir suportar até que as coisas melhorem. ele não tem perspectiva de melhora. ele é meu aluno, é engraçado, bem humorado e está com uma raiva tão danada, no potiguar dele, que, só hoje, escreveu oitenta e sete palavrões. hoje li, no edredon, vide bula, mas estava escrito vida bela. a vida bela agora é vide bula e queria ficar muito tempo ao lado do luis, que ele escrevesse os textos tão engraçados que escreve, que eu pudesse operar as máquinas de diálise, que os fascistas escaldassem numa piscina de cloroquina e ninguém mais deixasse o luis ter que escolher quem deixar morrer. o que será de nós, o que de nós será, o de nós será que? vide bula.