13.04.2020

o joão e eu gostamos muito da loja melinda & julius, que fica perto de casa. em primeiro lugar, é claro, por causa do nome, pois quem não há de gostar de uma loja com esse nome? mas também porque ela vende produtos orgânicos, naturais e variados e tem o ênio, o dono, que sabe tudo sobre tudo. se alguma coisa quebra aqui em casa, a gente diz que o ênio vai saber arrumar. se sentimos muita angústia, o ênio vai resolver. precisamos do ênio. ênio, por favor, hoje eu escrevi um texto importante, gravei um vídeo, corrigi cinco textos, preparei aula, respondi uns vinte emails, uns trezentos whatapps e almocei o pastelzinho de shimeji que comprei na tua loja, junto com tabule que eu fiz e arroz. acabei de dar aula agora, falei e falei e queria que você pudesse vir aqui ver se dava um jeito no pó que ficou na mesa, nas pétalas caídas no quintal, no almoço de amanhã e na minha carroça interior, que é como o naziazeno define seu desespero, no livro os ratos, que hoje, na aula, analisamos juntos. vem, ênio, por favor.


05.04.2020

sacrilégio, eu sei, mas às vezes acho a prosa do josé paulo paes melhor do que a do antonio candido. as palavras do candido se assentam como tubérculos, enquanto as do paes saltitam que nem pipoca: e vem um "dúplice", um "escapulir", um "desgracioso" e a gente fica só olhando os milhos se transformarem. e sabem onde o bolaño e o tolstoi se encostam? no exercício pros braços com pesinho que a adriana nunes manda pelo youtube. e como seria esse romance? vronski, no front napoleônico, acusado de estupro anal pelo delegado estebán, de cochuacán. o ignóbil jejua, cinquenta e nove por cento não desejam sua renúncia e nossa esperança mendiga recua. o remédio é dar, doar-se, entregar-se, buscar canais de assistência, envolver-se na ajuda ao próximo. próximo: o que está perto, mesmo que longe.


04.04.2020

nunca gostei do ditado "fazer do limão uma limonada". deixe o limão ser o limão, na sua verdidão amarga, na necessária acritude que ele empresta a tudo. e o sentido embutido na frase é de que é preciso transformar o suposto ruim, ou aparentemente improdutivo, em algo melhor, mais saboroso. pensei hoje que é tempo da preposição "em", mais do que da sua prima "para", finalista e resultadeira. cair em si, ficar em casa, olhando os limões. ontem vimos mais um do joseph losey, o criado, com esse ator dirk bogarde, um nome que meu pai repetia sempre, assim como rita hayworth, ingrid bergman e anthony quinn. mas tinha também a elba ramalho. meu pai adorava as pernas da elba ramalho. nunca gostei muito dela e uma vez sonhei que ela era uma roda gigante.


25.03.2020

hoje, medo. um que não tinha ainda sentido. de golpe militar, alguns minutos de pânico, talvez. certeza de que o apego ao celular, adição mesmo, precipitam a desproteção. a leda me diz pra me separar dele, se preocupa. deixo em outro ambiente, e retomo 2666, como escreve bem o filho da mãe do bolaño, mesmo sem empatia nenhuma com os personagens, quase desprezados por ele. ele desqualifica os intelectuais que descreve e eu, metida a intelectual, acabo concordando, mas me sinto mal. o joão toca violão no quarto do lado e me emociono escutando quando tá escuro e ninguém te ouve, quando chega a noite, de um jeito que só ele sabe cantar. discutimos um pouco, fazemos as pazes sem falar nada, que é o melhor jeito. ouço a aula da claudia mello pelo youtube e me emociono de chorar, de amor por todas as possibilidades que existem.


22.03.2020

micro paranoia e medo de desabastecimento, principalmente dos filhos. quando eles nasceram, jurei que eles não passariam por guerra, mas, de algum jeito, estão passando, meu terror. sob recomendação inopinada do piglia, comecei a ler pale fire, do nabokov, mas nada de gostar. larguei. escrevi sobre quase todas as comidas que minha mãe gostava e fazia e descobri que nada, nem os amores, nem as ideias, são a "quidade" de alguém tanto quanto as comidas. minha mãe "é" goulash, é molho de cebola, é compota. a comida e a fartura, a comida e a escassez. o livro da herta muller, "hunger", fala só sobre isso. o padre julio lancelotti forneceu o número de uma conta para comprar material higiênico para moradores de rua e, como a comida, é isso o que importa agora. importar: trazer para dentro.


19.03.2020

o joão acha que a brigitte bardot é a mulher mais bonita que já nasceu. eu queria ser a brigitte bardot e nadar numa banheira gigante com espuma até a borda, colocando só as pontas dos pés pequenos arrebitadas pra cima. mas estou aqui preparando aula e hoje descobri que, para dizer, "uma parte", o antonio candido dizia, às vezes, "uma costela de". minhas orquídeas estão com um fungo branco e parece que podem morrer. se eu fosse a brigitte bardot, teria orquídeas em flor todos os dias do ano e leria moliére em voz alta, enquanto o godard me filmaria, gritando: "está errado, sua burra!" e eu choraria no ombro do alain delon. ontem vimos um filme lindo com a jeanne moreau e eu aprendi a fazer samosas.


17.03.2020

primeiro aniversário sem minha mãe e sem poder ver meus filhos. o haitiano disse que o b. acabou e ele parece estar acabando mesmo. recebo mensagens de pessoas inesperadas e me comovo. todos estão mais comovidos e querendo estar próximos. ganhei três livros lindos do joão: um livro sobre a morte - assunto que mais tem me interessado; um sobre a língua dos tesrangeiros ( escrevi essa palavra errada, mas gostei, porque é isso mesmo) e outro da anne carson, onde tem um pequeno ensaio que ela escreveu para a morte da sua mãe. de algum jeito estranho, a morte, ultimamente, tem me lembrado da vida e não o contrário. penso na ausência dela, da mãe e me sinto mais viva: o doce de mil folhas que ela gostava, o molho de cebolas, o sorriso doce. hoje aprendi uma palavra bonita: ínvio, que é aquele que se desvia do caminho.


16.03.2020

em casa, isolada. no vizinho toca "o vapor de cachoeira não navega mais no mar", pelo caetano. não esperava que ele escutasse essa música e fico surpresa. contente. o bebê de dois meses chora e alguém bate numa parede. na minha frente, uma janela grande e as árvores bonitas do meu quintal. um vírus contamina a todos. o presidente de um país ao sul do mundo é como o coringa do batman, sem sua graça. me sinto estranhamente bem, preparando a aula que vou dar por skype, sobre "o cheiro do ralo", do genial lourenço mutarelli. ele escreve frases curtas e soltas e seus parágrafos têm cerca de um linha, uma linha e meia. "A vida é dura. Falo". fico apreciando a precisão desse "Falo" assim, isolado. isolado que nem eu. que nem todos nós.